quinta-feira, 14 de abril de 2011

O Sortilégio da mariposa II - O Prólogo


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

PRÓLOGO

"Senhores: A comédia que ides ouvir é humilde e inquietante, comédia rasgada do que quer arranhar a lua e arranha seu coração. O amor, o mesmo que passa com sua burlas e seus fracassos pela vida do homem, passa nesta ocasião por uma escondida pradaria povoada de insetos onde havia muito tempo era a vida aprazível e serena. Os insetos estavam contentes, só se preocupavam com beber tranquilos as gotas de orvalho e educar seus filhinhos no santo temor de seus deuses. Amavam-se por costume e sem preocupações. O amor passava de pais a filhos como joia velha e esquisita que o primeiro inseto recebera das mãos de Deus. Com a mesma tranquilidade e a certeza de que o pólen das flores se entrega ao vento, gozavam o amor sob a relva úmida. Mas um dia... houve um inseto que quis ir mais além do amor. Enamorou-se de uma visão que estava muito longe de sua vida... Talvez leu com muita dificuldade algum livro de versos que deixou abandonado sobre o musgo um poeta dos poucos que vão ao campo, e se envenenou com aquilo de 'eu te amo, impossível mulher'. Por isso, suplico a todos que não deixeis nunca livros de versos nas pradarias, porque podeis causar muita desolação entre os insetos. A poesia que pergunta por que correm as estrelas é muito daninha para as almas em botão... É inútil dizer-vos que o enamorado bichinho morreu. E é que a morte se disfarça de Amor! Quantas vezes o enorme esqueleto portador da foice, que vemos pintado nos devocionários, toma a forma de uma mulher para enganar-nos e abrir-nos as portas de sua sombra! Parece que o menino Cupido dorme muitas vezes nos buracos vazios de sua caveira. Em quantas antigas estorietas, uma flor, um beijo ou um olhar fazem o terrível ofício de punhal! Um velho silfo do bosque, escapado de um livro do grande Shakespeare, que anda pelos prados sustentando com umas muletas suas asas murchas, contou ao poeta esta estória oculta num anoitecer de outono, quando os rebanhos se foram, e agora o poeta vo-la repete envolta em sua própria melancolia. Mas antes de começar quero fazer-vos o mesmo pedido que a ele fez o velho silfo naquele anoitecer de outono, quando os rebanhos se foram. Por que nos causam repugnância aqueles insetos limpos e brilhantes que se movem graciosamente entre as ervas?  E por que a vós, homens, cheios de pecados e de vícios incuráveis, inspiram-vos asco os bons dos vermes que passeiam tranquilamente pela pradaria tomando o sol da manhã morna? Que motivos tendes para desprezar o que há de ínfimo na Natureza? Enquanto não amardes profundamente a pedra e o verme não entrareis no reino de Deus. O velho silfo disse também ao poeta: 'Muito em breve chegará o reino dos animais e das plantas; o homem se esquece do seu Criador, e o animal e a planta estão bem perto de sua luz; dize, poeta, aos homens que o amor nasce com a mesma intensidade em todos os planos da vida; que o mesmo ritmo que tem a folha embalada pelo vento tem a estrela longíqua, e que as mesmas palavras que diz a fonte na úmbria, repete-as no mesmo tom o mar; dize ao homem que seja humilde, tudo é igual na Natureza'. E nada mais disse o velho silfo. Agora, escutai a comédia. Talvez riais ao ouvir esses insetos falarem como homenzinhos, como adolescentes. E se alguma lição dela tirardes, ide ao bosque para dar graças ao velho silfo das muletas, num anoitecer tranquilo quando se tenham ido embora os rebanhos".

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