domingo, 8 de maio de 2011

O Cisne


O Cisne

a Victor Hugo

I

Andrômaca, só penso em ti! O fio de água,
Espelho pobre e triste onde outrora resplendeu,
De teu rosto de viúva a majestosa mágoa,
O Simoente mendaz que ao teu pranto cresceu,

Rápido fecundou minha fértil saudade,
Como eu atravessasse o novo Carrossel
Morto é o velho Paris (a forma da cidade
Muda bem mais que o coração de uma infiel);

Em espírito vejo os campos de barracas,
Os fustes aos montões, as cornijas rachadas,
Os muros de um verniz verde, as ervas opacas,
O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas.

Ali outrora havia um aviário;
Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão
Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário
Manda ao ar silencioso obscuro furacão,

Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas
Dos seus pés atritando o pavimento iníquio,
Arrastava no chão as grande plumas calmas.
Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico,

Suas asas no pó banhava, num desmaio,
E dizia a sonhar com seu lago natal:
"Água, não choverás? Não trovejarás, raio?"
Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,

Às vezes fitando o céu, como o homem ovidiano,
Para o céu de um azul cruel e tão irônico,
Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano,
Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!

II
Paris mudou! porém minha nostalgia
É sempre igual: torreões , andaimes, lajedos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que rochedos.

Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz,
Exilado que ele é, ridículo e sublime,
Roído de um desejo infindo! como em vós,

Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo,
Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno,
Junto a tumba vazia, em langor doloroso;
Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno!

Penso na negra, a tísica e a doente;
Busca de pés na lama e de olhar tão bravio
De sua África nobre o coqueiral ausente
Atrás do muro imenso, do nevoeiro e do frio;

Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba,
Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor,
Onde soem mamar, como de boa loba,
Nos órfãos a mirrar mais secos do que a flor!

E na floresta, que meu pobre corpo trilha,
Soa como buzina uma velha lembrança.
Penso no marinheiro esquecido numa ilha...
Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!

Charles Baudelaire


Imagem: Google images.

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