domingo, 25 de dezembro de 2011

Yerma em sua porta



Introdução

Aceitamos que, preliminarmente, a obra de Federico García Lorca (1898-1936) está marcada pela relação do poeta com a terra. Especialmente com a região da Andaluzia, na Espanha mediterrânica, onde, no início do século XX, viveu praticamente toda sua curta vida. Lorca nasceu na cidade de Puerto Vaqueros, e com nove anos foi morar em Valderrubio. Depois, em 1926, a família mudou-se para Huerta de San Vicente, em Granada. O próprio artista dá testemunho da importância dessa relação com a terra, sempre presente em sua obra: “Esse mi primer assombro artístico está unido a la tierra. (...) Mis primeras emociones están ligadas a la tierra y a los trabajos del campo” (LORCA, 1991).

A matéria com que Garcia Lorca dá forma à sua produção dramática é a mesma de sua atividade poética, ou seja, a que recolhe de uma região de fronteira, sinalizada imediatamente pela geografia. A hipótese com que se trabalha neste estudo é a de que o poema trágico Yerma seja uma produção cultural de fronteira, de acordo com as perspectivas de análise propostas por Homi H. Bhabha (1998) e Edward W. Said (2007). Além disso, considera-se que essa obra de Lorca reflita ainda o imaginário do povo andaluz e do próprio poeta, revelando trajetórias de imagens arquetípicas, cuja síntese será aqui tentada pelo instrumental teórico proposto especialmente por Gilbert Durand (2002).

O objetivo aqui é o de explorar as possibilidades de leitura oferecidas pelo texto da peça Yerma a partir do pressuposto de ter sido construída numa paisagem que contemple a existência de três fronteiras: espacial, psíquica e estética. A primeira é aquela revelada na cultura do povo andaluz, matéria de Lorca. A fronteira do psicologismo constitui o fundo da persona de Yerma, no processo de desenvolvimento de seu caráter, um dos objetivos declarados do poeta. Finalmente a da Estética, que desvela as diferenças de níveis dos gêneros lírico e dramático e dá o “andamento novo” da tragédia-poema, ousadia de Lorca e seu outro objetivo manifesto. A partir dessas considerações, a abordagem desse texto de Lorca deve levar em conta, em primeiro lugar, a elaboração dos limites e alcances das questões fronteiriças e de identidade cultural. Depois, será preciso analisar o percurso do desenvolvimento do caráter da personagem Yerma e, por fim, propor possíveis discussões sobre gêneros literários. Esses aspectos vinculam-se, de uma ou outra forma, à perspectiva de fronteira cultural, simbólica e discursiva. Assim, vão aparecer em Yerma  sinais de hibridismos provocadores, índices do limite e de tragédia.

O problema das fronteiras

A questão da fronteira geográfica é das mais difíceis de serem apresentadas, seja pelo calor das atuais discussões pós-colonialistas, seja pela sua própria dimensão e pelas inúmeras implicações de ordem disciplinar no campo da ciência. É muito provável que, ao final, o problema da fronteira geográfica, mais especificamente, mais afeito aos estudos da Sociologia, da Antropologia e mesmo da própria Geografia, não chegue a ser adequadamente explorado no presente artigo. De qualquer maneira, para a questão geográfica trata-se de situar a região andaluza como uma fronteira cultural e simbólica entre o que se convencionou chamar de Ocidente e Oriente. Considerado dessa forma, o tema, neste âmbito, será apenas esboçado aqui, para fins específicos, sem maiores aprofundamentos nos estudos colonialistas ou culturais, assumindo-se a Andaluzia do início do século XX como uma fronteira espaço-temporal.

Importante para o que se pretende apresentar para discussão são as relações de limite, as possibilidades de imbricações de valores culturais, sobreposições de imagens, símbolos e imaginários que Yerma revela. Sugerimos que o texto deve ser lido não como se olha para um horizonte de terras demarcadas, horizontalmente fixadas e superficialmente construídas. A perspectiva é outra, ou seja, aquela das verticalidades sem limites claros e com desejos de profundidade. Assim, pretendemos estar nos aproximando da perspectiva do autor: “és imprescindible ser uno y ser mil para sentir las cosas em todos sus matices. Hay que  ser religioso y  profano. Reunir el misticismo de una severa catedral gótica con la maravilla de la Grécia pagana” (LORCA, 1991). Pensado dessa forma o espaço, sempre cultural e simbólico, reunindo aparentes opostos, destina todas as suas tentativas de divisão a mero convencionalismo de ordem circunstancial ou oportunista.

Para Said (2007) o “Ocidente”, tanto quanto o “Oriente”, são ideias ou construções discursivas, sempre ideológicas, que têm “uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença (...). As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra”. Este estudo entende que o que separa essas duas instâncias culturais é extremamente difícil de definir, contudo uma das formas em que a divisão está cristalizada orbita o conceito de fronteira. Destaque-se, ainda com Said (2007), que novas arquiteturas se apresentam na perspectiva de “repensar e reformular as experiências históricas outrora baseadas na separação geográfica dos povos e das culturas”. O autor cita algumas obras para ele especialmente relevantes e preocupadas com tema: Amiel Alcalay, com seu Além de árabes e judeus: refazendo a cultura do levante, Paul Gilroy, de O negro atlântico: modernidade e dupla consciência e Moira Ferguson, com Sujeito e outros: escritoras inglesas e escravidão colonial. Esses autores e obras apresentam novas maneiras de visualizar relações consolidadas para os conjuntos judeu/árabe, Europa/África e questões de gênero/relações coloniais inglesas na África, respectivamente. Estaríamos aqui bem próximos do que se poderia chamar de regime do limite, das definições do ser e do ser outro. Ou, dito de outra maneira, o de poder ser múltiplos, com a individuação passando a ser considerada como um problema de gradação.

Para Lorca, a peça Yerma é o desenvolvimento do caráter de uma mulher estéril. Nas palavras do poeta, Yerma “Es sobre todas las cosas, la imagen de la fecundididad castigada a la esterilidad. Un alma a que se cebó el Destino señalada para víctima de lo infecundo” (LORCA, 1991). Garcia Lorca sinaliza claramente para a tragédia grega, conforme analisada por Aristóteles. Para a o caso presente, a imitação das ações de pessoas comuns, elevadas quanto ao caráter, marcadas pelo Destino, ou seja, destinadas ao fim trágico, ao sacrifício. Por mais humanista, em certo sentido, que tenha sido Sófocles ao arranjar as ações em Édipo, o personagem não escapa do lhe está destinado. Queremos dizer que, mesmo que todas as ações de Édipo sejam direcionadas a escapar daquilo que lhe prometiam os oráculos, ao final ele encontrará o que lhe estava reservado. A fórmula, se podemos assim chamar, de Aristóteles para a tragédia está presente em Yerma: “a história trágica imita as ações humanas colocadas sob o signo dos sofrimentos das personagens e da piedade até o momento do reconhecimento das personagens entre si ou da conscientização da fonte do mal” (PAVIS, 2001).

O imaginário andaluz presente na obra de Lorca pode ser visualizado de forma muito rica no texto de Yerma, seja na questão moral do patriarcado rural, definindo uma unidade entre a ordenação familiar e as formas de produção da sociedade. Esse espaço é compreendido especialmente pelos personagens masculinos, mas também pela incorporação de valores masculinos pelas mulheres. Pode ser entrevisto no canto das lavadeiras ou ainda na combinação de rituais católicos e pagãos. Todo esse “espaço vivido” (Bachelard, 2003), formou o imaginário pessoal de Garcia Lorca, definindo-o como homem de fronteira, num tempo de construção de imaginários nacionais. Num processo iniciado com o trecento italiano, o homem do final do século XIX e início do século XX experimenta ao mesmo tempo a consolidação do indivíduo burguês, ao mesmo tempo em que todo e qualquer produto pode ser “lido” como mercadoria. A afirmação definitiva dos valores burgueses após a Revolução Industrial e a constituição dos estados nacionais diluem e fortalecem, de forma ambígua, as concepções de pertencimento cultural. Diluem pela ascensão do indivíduo, com as correlatas noções de fantasia da igualdade e da universalidade dos direitos. Fortalecem pelas diversas formas de resistência dos locais da cultura, ou seja, de unidades culturais regionais, que com pesar chamamos aqui de “internas” aos estados nacionais. Por último, o convencionalismo das formulações desconsidera a porosidade das fronteiras.

Yerma é um mergulho nas raízes do povo andaluz, em busca da afirmação de uma identidade, vale dizer, de uma origem, ao mesmo tempo local e universal, tanto para Yerma quanto para o povo de Andaluzia e para aquele que os traduz:

Por eso hay en mi vida un complejo agrario, que llamarían los psicoanalistas. Sin este amor a la tierra, no hubiera podido escribir Bodas de sangre. Y no hubiera tampoco empezado la obra próxima: Yerma. En la tierra encuentro una profunda sugestión de pobreza. Y amo la pobreza por sobre todas las cosas. No la pobreza sórdida y hambrienta, sino la pobreza bienaventurada, simple, humilde, con el pan moreno (LORCA, 1991).

Com declarações como essas, feitas a um jornal de Madri, Garcia Lorca afirma o seu amor pela terra andaluza, com o que isso possa significar. Para nós significa que o autor tem na sua terra e no imaginário de seu povo o primeiro dado de sua existência. Sob esse aspecto, toda a produção artística de Lorca de algum modo reflete a proximidade do “outro”, representado pela presença do imaginário oriental na sua obra, no seu povo e no próprio artista. O Oriente não é apenas um vizinho com que se possa dialogar. O artista menciona em carta ao seu irmão Francisco, um “barroco oriental que tanto dice de Granada y de toda a Andalucía” (LORCA, 1991). Muito diversamente, na musicalidade, na religião, no moreno da pele e em outros aspectos, o que se quer fora e diferente, habita o imaginário andaluz e impõe o diálogo, como se vê em Yerma.

Os espaços em Yerma

Se a fronteira é o espaço, de toda forma imaginário, que separa paisagens convencionalmente físicas e políticas, mas sempre simbólicas, é também o ponto que está mais próximo do diferente, e, assim, mais sujeito a ressonâncias, imbricações e interferências mútuas. Assim, a “invenção” da fronteira pode ser compreendida como um esforço de afirmação diante daquilo em que não se reconhece, lançando para o “outro” o que não deseja como elemento de sua constituição. Esse esforço de fixação das identidades, sejam elas nacionais, regionais ou individuais, ocorre numa espécie de jogo de puro/impuro, desenvolvido/atrasado, civilizado/bárbaro, dentre muitas outras polarizações, sempre forçadas. O ponto máximo desse tipo de percurso em busca obsessiva de afirmação culminaria na constituição de um diferente tratado como “abjeção” (KRISTEVA, 1980). Garcia Lorca não joga esse jogo, contrariamente, o poeta instala Yerma no limite entre a casa e a rua: a porta.

Yerma está dividida em três atos, mas perguntado numa entrevista se a peça estava assim constituída, Lorca nos informa que, antes que em três atos, a peça está dividida em seis quadros:

De estos quadros, tres, los que correspondem a los interiores, tienen um dramatismo reconcentrado, una emoción silenciosa, como reflejo plástico de um tormento espiritual; los otros tres, al recibir color y ambiente natural, ponem luminarias de luz em el tono escuro de la tragedia. En estos no intervienen para nada los protagonistas, y solamente actúan auténticos coros a la manera griega (LORCA, 1991).

Três quadros “dentro” e três quadros “fora”, assim é a arquitetura espacial de Yerma, segundo palavras de seu autor. Separando esses ambientes na observação da obra, verificamos que em dois dos três quadros “interiores” as ações se passam em casa de Yerma e o outro em casa de Dolores. Quanto à mencionada parte destinada à atuação do coro está distribuída em a) cenas no campo, seja o das plantações de Juan, seja o dos pastos de Víctor; b) à beira do riacho, no canto das lavadeiras e, finalmente, c) nos arredores da Casa do Santo, no último quadro. Yerma, todavia, passa grande parte de seu tempo sentada no batente da porta de sua casa, num ponto que une e separa essas duas dimensões de espaço fixadas por Lorca.

Esse esquema espacial e dramático não é suficiente, porém, para afastar definitivamente a presença do estranho, nem é essa a intenção do autor, conforme acreditamos. Talvez valesse a pena recuperar algo da simbologia associada ao número 3, que nos remete à sociabilidade, criatividade e busca pela expressão e pela convivência. Para Johan Heyes (2007) a essa simbologia informa que o 3 “é o resultado do encontro de polaridades, a criação, o filho, a ideia, a expansão através da unificação dos contrários, a completa assimilação de tudo, a interação com o todo”.  Esse autor exemplifica a produtividade dessa significação com exemplos: a trindade cristã, a mitologia egípcia – com Ísis, Osíris e Hórus, a mitologia grega – com Zeus, Demeter e Ares/Pã, Afrodite, Hermes, o hinduísmo, com Brahma, Vishu, Shiva. Outros exemplos poderiam ser encontrados na mitologia romana, na cabala, na astrologia, na concepção humana do tempo – passado, presente, futuro, entre outros. A personagem Yerma está em busca da realização do terceiro, ausente. A personagem é caracterizada por uma moral católica, sufocante e castradora, que a enche de culpa, impede sua realização como mulher e, em decorrência disso, sua realização como mãe. Por outro lado, a filosofia imposta pela moral duplamente patriarcal e machista, advindas das influências das duas culturas, a católica e a islâmica, não impede Yerma de buscar a ajuda de benzedeiras e de ir em romaria à Casa do Santo. Participa, assim, de “liturgias” pagãs, negadas pelo catolicismo, então hegemônico. Lorca joga luz na parte obscura da construção ocidental de um oriente estagnado, congelado no tempo, o mesmo desde sempre. A cultura e os símbolos de outras terras aparecem em Yerma, seja no suposto atraso das práticas econômicas, seja nos estatutos morais quase medievais, seja na convivência de crenças milenares ou na simbologia de sua construção do espaço das ações.

Para Said (2007), o “orientalismo”, ou seja, a “invenção” do Oriente pelo Ocidente consolidou-se no século XX como uma espécie de disciplina universitária. Ainda hoje os doutores das grandes universidades do mundo têm hoje “lugares de fala” privilegiados sobre o Oriente. Essa tradição remonta ao início do século XIX, ou talvez a muito antes, como a que se observa na relação dos Gregos com os povos vizinhos, de que nos dá conta Os Persas, de Eurípedes. O que se poderia chamar de “mito do Oriente” tem como fundamento uma regra fixada inicialmente pelos governos inglês e francês, de que os povos orientais não podiam, em razão de seu estágio civilizatório, expressar-se por si. O resultado, segundo Edward Said, é a produção de um discurso que submete o Oriente à visão do ocidental. Um problema é que, ainda seguindo a argumentação de Said, essa construção discursiva e dominadora, em que pese ser internamente “coerente”, mesmo a palavra “Oriente possui uma grande ressonância cultural no Ocidente (SAID, 2007, p.274). Garcia Lorca, ao mergulhar na cultura de seu povo, revelou essas ressonâncias, articulando-as, trabalhando artisticamente na fronteira simbólica entre esses “dois mundos inventados” pelo discurso hegemônico. Talvez por isso Yerma esteja espacialmente no limite simbólico dos dois “mundos”: a sua porta como fronteira. E ainda, a peça esteja “dividida” em duas partes, cada uma com três quadros, o que pode sugerir a reiteração da necessidade da convivência, ou da união produtiva.

No caso da produção artística de Lorca o “outro” não está apenas do outro lado do Mediterrâneo, mas também nas produções da modernidade que avança, e nos entrelaçamentos dessas instâncias temporais de ordenação de cultura e formas de produção. Para Hauser (2000), ao observamos as configurações e o desenvolvimento histórico de culturas como as do Egito e da Mesopotâmia antigos,

O campesinato prossegue em sua própria existência tradicionalmente definida, independente da incansável azáfama das cidades, em suas aldeias e povoados, dentro dos limites de sua economia doméstica, e, mesmo que sua influência esteja em constante declínio, o espírito de suas tradições ainda é discernível até nas manifestações mais recentes e mais avançadas das culturas urbanas altamente diferenciadas desses países (HAUSER, 2000, p.25).

Mantendo sua forma primária de produção econômica, com maneiras tipicamente rurais de organização social, a Andaluzia do início do século XX está ainda assim situada na mesma Europa pós-industrial. A existência da atividade artística de Lorca, vinculada a esse lugar, simultaneamente dá testemunho da resistência desse imaginário local e da profundidade de seu alcance no âmbito cultural europeu. A musicalidade e o ritmo dos cantos não deixam dúvida nem quanto à raiz local de Yerma. Esses mesmos e ainda outros elementos anunciam a proximidade do “outro”, fazendo com que essa “ressonância” dilua a fronteira e desconstrua, a seu modo, o discurso da divisão, sugerindo a convivência.

Com Jung (1932) pretendemos que o desenvolvimento do caráter de Yerma foi tratado como “designação [que] age como se fosse uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se”. Assim considerados os argumentos de Jung, a conduta da personagem Yerma não poderia ser outra, pois atende a imposições, vocações, chamados interiores, como vozes de serpentes, ou outro qualquer impulso “demoníaco”, que a leva a cumprir seu destino. Situação patente desde o início, posto que, ao casar-se, o primeiro pensamento que lhe veio, imediatamente, foi o de ter filhos. Nessa altura, acredita-se pouco importar, tendo em vista as pretensões deste artigo, se Yerma se casou com o homem que queria ou com aquele imposto pelo pai. Este último, justamente, o caso específico e comum à época, tanto de um como de outro lado do mundo.

O percurso de individuação de Yerma exigia o cumprimento da ordem da “voz” que lhe ordenava ser mãe. Essa trajetória é decisiva na constituição de caráter na peça. No caso de Yerma a “fonte do mal”, se está fora dela, ou seja, se está na infecundidade de seu marido, Juan, não está completamente imposto de fora, mas no desenvolvimento de seu caráter, como nos informa o próprio Lorca. Há outros protagonistas na peça, mas são quase “tipos”. O único caráter em desenvolvimento é o de Yerma. Para Aristóteles, em sua Poética (1450a), “os caracteres são subordinados à ação e são definidos como ‘aquilo que nos faz dizer, das personagens que vemos em ação, que elas têm estas ou aquelas qualidades’. (...). Por extensão, caráter designa essa personagem em sua identidade psicomoral” (PAVIS, 1999).

O “desenho sinuoso” que pode ser visualizado na trajetória de Yerma, revela o que Jung chama de “tendência reguladora ou direcional oculta, gerando um processo lento e imperceptível de crescimento psíquico” (JUNG, 2002). O que insinua esse “desenho” é o que o analista chama de processo de individuação. Para Nise da Silveira,

Todo ser tende a realizar o que existe nele em germe, acrescer, a completar se (...). Mas no homem, embora o desenvolvimento de suas potencialidades seja impulsionado por forças instintivas inconscientes, adquire caráter peculiar: o homem é capaz de tomar consciência desse desenvolvimento e de influenciá-lo. Precisamente no confronto do inconsciente pelo consciente (...) é que os diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se numa síntese. Essa confrontação (às vezes conflito, às vezes colaboração) é o “velho jogo do martelo e da bigorna: entre os dois, o homem, como o ferro, é forjado num todo indestrutível, num indivíduo. Isso, em termos toscos, é o que eu entendo por processo de individuação (SILVEIRA, 1978).

Recusando-se aos apelos de concessões ao modelo masculino de ordenação da cultura local, Yerma insistiu em persistir em uma caminhada inversa àquela que fez Psiquê. Esta se submete aos poderes da Grande-Mãe, conquista o amor e a ascensão. Machado e Galdino (2010), explicitando as “trajetórias inversas, de ascensão e queda, das duas heroínas”, defendem que Yerma, ao contrário, submete seus desejos corporais e psíquicos de mulher e obstina-se com a “necessidade” de ser mãe. Além disso, buscando cegamente explicações para o fato de ainda não sê-lo, sucumbe, com o assassinato, ainda que obliquamente, de seu filho, pois matando Juan, eliminava, por força de sua formação moral, sua única possibilidade de ser mãe.

Não obstante a obra de Garcia Lorca ser revelação de sua consciência e responsabilidade para com os limites da tradição de seu povo, dos limites da construção da personalidade feminina, o seu texto também revela outra dimensão de fronteira, agora, então, de ordem estética. Numa entrevista em julho de 1934, Lorca afirmou, sobre a produção de Yerma:

Ahora voy a terminar Yerma, una segunda tragedia mia. La primera fue Bodas de sangre. Yerma será la tragedia de la mujer estéril. El tema, como usted sabe, és clásico. Pero yo quiero que tenga un desarrollo y una intención nuevos. Una tragedia con cuatro personajes principales y coros, como han de ser las tragedias. Hay que volver a la tragedia. Nos obliga a ello la tradición de nuestro teatro dramático (LORCA, 1991).

O coro está presente no nascimento da tragédia, ou seja, nas suas origens religiosas que Lorca se propõe retomar. De acordo com Pavis (1999), “A tragédia grega teria nascido do coro de dançarinos mascarados e cantores”, passando, em seguida a “forças não individualizadas e frequentemente abstratas que representam interesses morais e políticos superiores”. Em Yerma, a forma mais condensada do coro aparece no canto das lavadeiras. Nenhum nome é mencionado e suas falas são separadas umas das outras por meio de números. De novo o três, pois são seis as lavadeiras, a totalidade reiterada da voz do povo. Aqui, no entanto, as notas são dissonantes, e vão desde a maledicência mais aberta à sensibilidade mais aguda para com o sofrimento de Yerma. Sempre com ritmo e harmonia, marcados pelas batidas dos panos nas pedras molhadas.

Por essas razões estão fadadas à incompletude todas as tentativas de falar da produção de Federico García Lorca sem mostrar a música e a dança, o ritmo, seu andamento poético, sua vertigem da terra natal. O que resumimos na sua felicidade transbordante com a presença dos coros. Uma possibilidade é a percepção do “impulso lírico” (HEGEL, 1832, apud PAVIS, 1999) muito claro no texto, inclusive extrapolando o espaço próprio do coro. Lorca afirma que há necessidade de produzir tragédias, como uma obrigação do artista para com o seu povo. Por outro lado, o artista que busca a tradição da tragédia (“Hay que volver a la tragedia. Nos obliga a ello la tradición de nuestro teatro dramático”), quer propor “que tenga un desarrollo y una intención nuevos”.

Vale pensar sobre esse novo desenvolvimento e essa nova intenção, de que nos fala Lorca. Na tragédia clássica, cuja teorização tem como ponto de partida quase sempre Aristóteles, o destino do herói está traçado independentemente de sua conduta em cena. Isso faz com que a personagem trágica, qualquer que seja a sua conduta, encontre o seu destino, determinado pelos deuses ou pela ancestralidade. Daí a origem religiosa da tragédia, no mythos aristotélico. Em Yerma, os coros não impõem preceitos morais ou políticos “superiores”, pelo contrário, sugerem possibilidades de atuação, embora reflitam o imaginário do povo do lugar. Essas sugestões dos coros, concentradas no canto das lavadeiras, mas espalhadas pelo lirismo acentuado e pelo texto todo, farão parte do universo das escolhas possíveis que definirão a trajetória de Yerma. De qualquer forma, do conjunto das falas dos coros é possível identificar vetores. 

A tragédia moderna traz o trágico como algo intrínseco ao caráter do herói, à sua conduta, ou, dizendo de outra forma, apresenta o destino como resultado do desenvolvimento de seu caráter, de sua conduta. Na modernidade, distintamente, conforme Hauser (2000), a tragédia não é dada, é “descoberta” pelo herói. Em Yerma o que se tem é um caráter em desenvolvimento. Um caráter que se desenvolve artisticamente em espaço de fronteira, ou seja, que coloca em discussão os conceitos modernos e clássicos para a tragédia como gênero. Além disso, no caso de Yerma, há a proposta polêmica da realização de tragédias em tempos modernos, o que coloca o texto, inclusive sob esse aspecto, numa situação de fronteira estética. Fronteira esta que envolveria a discussão não só das relações entre o trágico e o lírico, mas também entre modernidade e tradição.

Finalmente, embora a crítica do imaginário possa estar visível em vários momentos deste artigo, gostaríamos de sugerir as possibilidades de recepção de Yerma, como atualização/tradução de alguns mitos do mundo antigo. Parece-nos mais facilmente destacáveis: Úranos e Géia – “Vieja: Para tener um hijo há sido necesario que se junte el cielo com la tierra”, Perséfone – Yerma: Las mujeres dentro de sus casas. Cuando sus casas no son tumbas”e Eros e Psiquê – Yerma: Ojará fuera yo una mujer; Juan: Lo que pasa es que no eres una mujer verdadera”.

Conclusão

Esperamos que as noções de fronteiras com as quais elaboramos este texto tenham possibilitado a visualização da peça como marca profunda do artista e que sinalizem para o mito dominante na Andalucía, em Yerma e para o mito pessoal de Garcia Lorca.  Em Yerma, obra em que se vê o sangue dos personagens, os únicos mascarados são reminiscências da tragédia clássica. Todo o mais é poesia que se faz gente do povo colocada em cena na tensão do tempo presente. Vale lembrar que o texto foi concebido num tempo que não corresponde àqueles dos três grandes momentos da tragédia: o período clássico grego, a Inglaterra do século XVI e a França do século XVII. Esse fato nos lançaria a uma nova fronteira, agora temporal, que estaria sendo criada por Lorca.

A síntese que se buscou com este estudo é a do homem em situação de fronteira, ou seja, um tradutor que, ao mesmo tempo, promove a atualização da pesquisa estética e do imaginário do seu tempo, do seu lugar, do seu povo. Tal síntese seria capaz de recuperar e valorizar as tradições, que são coletivas, mas que também faz do artista um ser que se coloca em discussão, apontando caminhos novos de interpretação dessa tradição, apresentando formas novas. Se o artista trabalhou em situação de fronteira, todas elas foram reformuladas, o que queríamos que significasse uma atualização/tradução do imaginário material universal em contexto andaluz.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SILVEIRA, N. da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

2 comentários:

  1. boa tarde. este texto parece ser um trabalho de âmbito académico.
    poderia informar-me do seu título, autor, e âmbito de apresentação?
    obrigada! Gisela Cañamero

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  2. Oi, Gisela!
    Tens razão: trata-se texto base (de minha autoria) de apresentação que fiz no I Colóquio Internacional de Poesia e Dramaturgia em Homenagem a Federico Garcia a Lorca, com organização geral do Grupo de Pesquisa "A dramaturgia poética de Federico Garcia Lorca, sob a Coordenação da Professora Irley Machado e realizado em dezembro de 2011, no Campus Santa Mônica da Universidade Federal de Uberlândia. Este texto, depois tornou-se um artigo produzido no âmbito dos estudos do meu Mestrado em Literatura, cuja dissertação foi defendida em setembro de 2013. Com alguma modificação, o texto deve ser publicado agora em formato de capítulo de livro.
    Grande abraço.
    Gilson.

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