sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Não encontra em lugar nenhum

Tempo desse me lembrei do meu primeiro dia de aula em um dos 30 cursos de graduação que comecei. Esse da lembrança, eu o concluí, só Deus, eu e minha companheira de sempre (fisicamente por perto ou não) sabemos como. Então, nesse primeiro dia de aula, eu me lembro que a primeira disciplina a ter aula era a de Francês. Entramos para a sala, no horário marcado no calendário, e o professor demorou alguns minutos. Poucos. Aí entrou um moço magro, alto, de calça jeans, paletó preto, cabelo desalinhado e um monte de livros debaixo dos braços. Sim, ele tinha uns cinco ou seis livros em cada mão. Tudo bem, era de se esperar. Com cara de poucos amigos, na medida em que se aproximava de sua mesinha, em frente da lousa, encarava um a um os alunos, num passo lento, querendo causar certa impressão ou sei lá o quê. Ninguém ali sabia Francês, exceto eu, que muito mal havia feito algumas aulas muito antigamente e algumas leituras idem, e o Marco Antônio, hoje doutorando da USP, que conhecia o idioma um pouquinho mais que eu. Pois o moço de cara amarrada começou já pela apresentação falando em Francês. De tudo que falou, acho que conseguimos entender que ele era o nosso Professor e que se chamava Gedeon.

Nisso um dos nossos colegas, que sentava ao fundo da sala, começou com uma série de saídas e entradas na sala, sempre arrastando cadeiras e batendo a porta. Aquilo foi levando o Professor ainda para mais perto da exasperação e, aproveitando uma das saídas do colega, respirou fundo, pediu desculpas (“Excusez-moi, vous”) e começou a falar em português mesmo. Dizem que isso acontece muito com os professores lá na Itália: em momentos de ira eles perdem o controle, esquecem o italiano (que todos sabem: é uma língua que não existe na prática das pessoas, apenas nas cerimônias públicas, jornais, publicação de livros, etc) e começam  falar, digo, gritar, em seus dialetos locais.

Em bom português, Gedeon pediu desculpas por aquelas interrupções provocadas pelo aluno que entrava e saía, disse que ele estava repetindo a disciplina, que tinha muitas dificuldades, era praticamente um retardado, enfim... Que tivéssemos paciência com ele durante o ano, etc. Ele tinha muita dificuldade em aprender, coitado...

 Nisso o aluno voltou, com a barulheira de sempre. Rimos um pouco e o Professor abaixou a cabeça, movendo-a de um lado a outro em sinal de reprovação e desespero. “Bien, voilà”, disse, colocando a mão sobre uma das pilhas de livros, e é essa fala dele sobre os livros a serem utilizados na disciplina que me fez lembrar do Gedeon e daquele dia. Agora misturando as duas línguas, ele tomava nas mãos um a um dos livros e sobre cada um deles o final da conversa era a mesma: “Este livro vocês não encontrarão para comprar no Brasil, não acha, não adianta procurar. Tentem ver se encontram alguém que tenha e possa emprestar, coisas desse tipo. Eu só tenho este e, no máximo, posso deixar alguma coisa no Xerox e vocês vão copiando o que for possível”. Pegava outro livro: a mesma história. Outro: de novo. Uns 10 minutos se passaram, todos querendo rir, mas sem jeito e pensando: “Mas, como, então?!”. Nisso o Marco Antônio desconfiou do Francês do Gedeon e fez um comentário que só o “Professor” ouviu. A resposta veio imediatamente e ríspida: “Fermez la bouche!!”, que eu mesmo compreendi. Gedeon continuou a dizer que usaria livros aos quais ninguém tem acesso.

Encurtando a história, que deve ter durado uns 20 minutos: Gedeon era aluno concluinte do Curso e estava fazendo um “trote” com os calouros. Quando achou que a brincadeira tinha chegado ao fim, apresentou o verdadeiro Professor, que não podia ser outro se não o “aluno aloprado” e inquieto que arrastava cadeira ao se movimentar e batia a porta ao entrar e sair. Claro que receberam aplausos de todos pela elegante e divertida recepção.

Agora no mestrado, o que me fez escrever estas linhas é o “não acha em lugar nenhum” da fala de Gedeon. Que coisa irritante acontece quando a pesquisa começa a se afinar e os livros vão ficando cada vez mais inacessíveis. Verdadeiras sagas muitas vezes são necessárias para localizar um exemplar do qual se tem necessidade para ontem. Há alguns dias rodei o mundo, literalmente, pela internet e pelo telefone, procurando um texto. Simplesmente não achava. Em lugar nenhum, com ninguém. Resolvi apelar: como o autor está vivo (que Deus o mantenha assim por muito tempo), busquei o seu contato e resolvi escrever um e-mail pra ele. Pedi mil desculpas e contei minha história, num e-mail que, em outros tempos, seria chamado de carta, por suas dimensões. Sinceramente, não tinha muitas esperanças: conheço um pouco essa gente. Para surpresa minha dois dias depois a resposta estava na minha caixa. O Professor/autor pedia desculpas pela demora e explicava que realmente o livro estava esgotado e, nesses casos, costuma acontecer de ele parar de circular: quem tem não vende; quem não tem não acha pra comprar. Aí o melhor da história (pelo menos pra mim): ele disse que uma nova edição estava sendo preparada (Deus sabe o quanto isso pode demorar), mas tinha um exemplar em casa e poderia me ceder, caso me interessasse. Estava um tanto quanto riscado, etc, mas... Resultado: o livro está aqui comigo, com dedicatória e tudo.

Devo ter aqui na estante uns 10 livros que pertencem à minha orientadora, para ganhar tempo. Livros que ela comprou na Espanha, na Argentina, na Alemanha, ou que algum amigo trouxe pra ela de algum lugar. Obra completa de um autor à qual eu jamais teria acesso, não fosse esse tipo de generosidade. Ela diz: “Pra você eu empresto, leva, fica com eles enquanto precisar; se eu precisar, te aviso”. Outro tanto são de colegas que viveram o que vivo agora e sabem, exatamente, do que eu estou falando.

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