quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Jeca e o Brasil

Foi mais ou menos assim. Lobato, em 18, publica "Urupês", em que surge "majestosamente" a figura do Jeca Tatu. Aparece bem desenhado, com todos os traços necessários: sujeira, preguiça, burrice, imprevidência, inconsequência, tudo a retratar o caipira, que, como sabemos, tem muitos outros nomes. Um desses nomes é "o brasileiro que ninguém quer ser". Que Lobato nasceu para a polêmica, disso também ninguém duvida. 

Em 19, Dr. Rui Barbosa perde as eleições presidenciais para Epitácio. Será a última vez que disputa uma eleição presidencial. Sai o Dr. Rui, após a derrota a fazer conferências sobre a "questão social e política do Brasil". São preciosidades, comparáveis aos sermões do Pe. Antônio Vieira. Numa delas faz especial elogio ao "admirável escritor paulista", o criador do Jeca.  Dois trechos da conferência:

"Se os pecos manda-chuvas desse sertão mal roçado, que se chama Brasil, o considerassem habitado, realmente de uma raça de homens, evidente não teriam a petulância de governar por meio de farsanterias, como e com que acabam de arrostar a opinião nacional e a opinião internacional, atirando à cara da primeira o ato de mais violento desprezo, que nunca se ousou contra um povo de mediana consciência e qualquer virilidade"

"Mas, senhores, se é isso o que eles veem, será isto, realmente, o que nós somos? Não seria o povo brasileiro mais que esse espécime do caboclo mais dasasnado, que não se sabe ter de pé, nem mesmo se senta, conjunto de todos os estigmas da calaçaria e estupidez, cujo voto se compre com um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vez de aguardente?"

Polêmica acesa, há quem diga que foram as palavras do Dr. Rui que lançaram Lobato na direção da riqueza e da fama. Muitos participaram dessa briga, digo, conversa. Intelectuais pesadíssimos saíram de suas alturas em defesa do escritor paulista e de seu Jeca. Parece que ninguém criticou o caipira como símbolo nacional (subliminar na fala de Rui). Gilberto Freyre teria atribuído a Lobato o despertar de Rui Barbosa para as questões sociais brasileiras.

A seguir a manifestação preciosa de Luis da Câmara Cascudo, em A humanidade de Jeca Tatu, artigo publicado inicialmente no jornal A Imprensa, de Natal-RN, e que sairá também na antiga Revista do Brasil em 1920:

"Por mais que se declare e se prove a homogeneidade do tipo brasileiro, salta-nos à vista, para cada cidade o seu caráter próprio e especiais maneiras de ver e de observar.

"Debalde, em literatura e desenho temos lutado para consolidar as linhas físico-psíquicas do brasileiro. Em desenho aparece no Brasil a cópia do Zé Povinho de Bordallo Pinheiro com adaptações em casacas e tangas, correndo a escala entre o clubmen e o moruquixaba. Em literatura é aquilo que Alencar escreveu com passagens transitórias em Bernardo Guimarães e Manoel de Macedo. Monteiro Lobato encarnou a sua observação numa idéia feliz, e na porta de um buraco lôbrego e esconso Jeca Tatu “magina” com o cigarro de palha nos beiços delgados, os fios raros da barba na face esverdeada e fosca, olhando a mata, sentado nos calcanhares. Apareceu a fogosa oposição dos Jecas em transição evolutiva. Criou-se o Mané Chique-Chique, esgalgado, escanifrado, cavalgando um cavalo raquítico, de ancas a furar a pele, contando aos pulos e às reviravoltas proezas e façanhas guerreiras, com o chapéu de couro desabado, metido a duro, de faca à cinta, garrucha ao quarto, cigarro à boca. Quase imediatamente apareceu o Jeca Leão, com um fulgor que lhe dá o seu papá Rocha Pombo. Surgem livros, lutam e discutem, e Jeca coça a cabeça admirado de ser de um momento para outro, célebre. Mesmo o Dr. Raul Azedo, com doces provas de forte erudição, provou que Jeca Tatu era um forte, o cigarro de palha, um mito, o cachorro, e a “maginação” apoiada entre calcâneos e glúteos, infrutífera. Jeca forte, Jeca sábio, eu conheço muitos, porém só ouso apresentar o General Rondon. Jeca na porta do casebre, sentado no calcanhar, sugando a terra, ociosa e triste, é peculiar a peculiar a todo o norte do Brasil. Mané Chique-Chique é comum nas feiras sertanejas. Pelo exposto pode-se prever que esses tipos criados são típicos representantes duma grei numerosa e conhecida. Não quer dizer que o sertanejo, lutando contra os elementos, arrastando as longas caminhadas sob um sol de fogo, entrando destemido nas matas amazônicas, seja literalmente um Jeca Tatu. Porém, quem viaja e quem vê pelo sertão o fatalismo sertanejo, a limitação da sua agricultura, a instintiva desconfiança pela civilização, a sua habitual indolência que o faz esquecer a rude lição das cenas e nada enceleirar nos anos de inverno, a sua palestra, a sua ignorância política, enfim, os remédios populares, a ingênua crendice dos curandeiros e das meizinhas verá a imensa verdade das páginas vivas do “Urupês”. Anos antes do Jeca ser criado já os vagos contornos do conto estavam esboçados no “Terra do Sol” de Gustavo Barroso. Durante a seca deste ano, os sertanejos descriam a uma da utilidade dos trabalhos encetados porque “seca e castigo vem do céu quando Deus, nosso Senhor manda”, aí está humanamente parafraseado o “não paga a pena” do Jeca Tatu.

"Que tenham paciência, Jeca é humano e vive. Não é preciso estender a generalidade do tipo a todo brasileiro, porém Jeca conservador das velhas tradições, Jeca nômade, desconfiado, levando o incêndio a uma floresta para destocar meio palmo de mato, Jeca usando da prodigiosa fecundidade da terra como refúgio natural à sua indolência, existe, “magina” e é nosso contemporâneo.

"E é grata a verdade que Jeca Tatu mesmo de cócoras, com o cão magro à porta, a prole doentia, a casa enlameada, o cigarro apagado atrás da orelha, votando sem saber em quem, crendo em tudo, com o tamborete de três pernas e a viola tristonha levanta onde está o gonfalão vistoso de uma variante à energia brasileira, respeitada e seguida por uma boa porcentagem dos que habitam e são filhos da “ditosa pátria minha amada”.".

O caipira, o sertão e o sertanejo, o Jeca Tatu precisam existir para sempre, para que o "brasileiro" tenha onde jogar tudo que ele pensa que não é.

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