quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A mediania de cada um

 Seu Zezinho

Coisa das mais difíceis é medir as grandezas do ser humano. Quase sempre o fazemos pelo negativo, como se a bondade, a educação, a elegância fossem traços naturais. Não são. Já se disse que a opressão é o preço da civilização. E da sobrevivência da espécie, talvez. Esta última, ainda assim, muito discutível em suas linhas mais gerais. Na vida prosaica do dia comum nosso de sempre, alguns seres podem nos ajudar a ver ângulos novos. Conheço vários dessa estirpe e vou falar de um deles aqui: o senhor José Ferreira, Seu Zezinho, mecânico de automóveis, como gosta de ser conhecido.

Um metro e sessenta, no máximo, eis o tamanho do homem. Barbas e cabelos totalmente brancos, esses dois elementos de sua composição física nunca merecendo atenção alguma. Avô e aposentado. Já passou bem pelos setenta. Mecânico de Automóveis por puro gosto, Seu Zezinho possui oficina colada na casa em que vive com a esposa, uma das filhas e um dos netos. Trabalha quase sempre sozinho: não tem mais paciência com quem acha que sabe e nem para ensinar a quem não sabe. Seus conhecimentos do ofício são de impressionar. Se o seu carro estiver com algum barulho estranho, ele vai saber disso antes que você diga; até mesmo antes que o carro entre na oficina, ele já ouviu e sabe sobre o que você vai reclamar. Às vezes fala de um barulho na roda traseira direita que você mesmo não tinha percebido. Não aceita qualquer carro na oficina nem trabalha todo dia: apenas atende amigos ou pessoas indicadas por amigos; muitas vezes acorda sem vontade de trabalhar, toma café, avisa D. Joana que vai não sei onde, monta na moto estradeira, desaparece e só volta junto com a noite.

Há pessoas e pessoas, todos sabem, e Seu Zezinho é uma delas. Ignorância é poço sem fundo, todos sabem, e Seu Zezinho é uma das provas disso. São inúmeros os exemplos. O velho mecânico desenvolveu, ao longo de 50 anos consertando veículos, um ódio mortal a determinados tipos de carro, que ele chama, desculpem, de “essas desgraças”. Pois então, sempre que vou até sua oficina, lá está pelo menos uma dessas... Um desses carros excomungados. Não vou mencionar os nomes das “porcarias” por causa da elegância de que ainda sou capaz de manifestar às vezes. E por medo de represálias, também. Vamos tentar ser justos. Um dia, vendo-o debaixo de um deles e xingando sem parar palavrões terríveis, não resisti e perguntei:

– Mas, Seu Zezinho, desculpa, mas se o senhor sabe que esses carros não prestam, por que o senhor os pega para consertar?

A resposta é quase impublicável, mas gira em torno de algo como: “São esses filhos da puta desses meus amigos. Eu já falei mil vezes pra não comprar essas desgraças e eles me aparecem aqui com essas pragas...” E por aí vai. Nesse ponto abre um sorriso e diz que, na verdade, outro motivo é que um homem precisa xingar alguns palavrões todos os dias, “faz bem pra saúde”. E, finalmente, que aqueles carros malditos só aceitam ser consertados debaixo de muito xingamento. “Se não xingar, não funciona”. Às vezes é desconcertante ficar perto dele no trabalho. No começo me causava certo constrangimento. Depois me acostumei, passei a acender um cigarro começar a rir comigo mesmo, ali num canto. Ele lá, um palavrão emendando no outro. “Aí, tá vendo?” – Dizia ele, de repente.  “Está regulado esse ***, não sei como permitem que se fabrique uma *** dessa”.

Outra. Seu Zezinho odeia aparelho de telefonia celular. Possui um desses, exatamente o mesmo, há uns 15 anos, nunca achando razão suficiente para trocar. Agora, basta o aparelhinho cheio de graxa tocar, lá vem todo o repertório de palavrões outra vez. Já o vi atender ao chamado e continuar xingando que aquela merda filha da puta não o deixa trabalhar. Penso que as pessoas já sabem dos contextos todos e transmitem suas mensagens sem maiores problemas. Um dia, pensei em questioná-lo sobre as razões de ter o aparelho, se o incomodava tanto... Vislumbrando a resposta, me calei.

Agora, quer tirar o Seu Zezinho do sério, de verdade? Quer chamá-lo para resolver tudo na faca? É muito simples: ao sair diga “Seu Zezinho, fica com Deus”. Há os amigos mais próximos, que conhecem variantes: “Zé, você precisa ir pra igreja, rezar um pouco”. Ou então: “Zé, você sabe se tem uma igreja aqui perto?” Essas palavras são chaves para abrir um repertório inacreditável de impropérios e destemperos, blasfêmias e todo tipo de desacato, num ritmo que chega a travar a fala do velho. Começa mesmo a gaguejar de puro ódio. Não disse antes, mas na juventude, quando ainda era funcionário do Ministério da Saúde, Seu Zezinho fez dois cursos de graduação, um em Filosofia e outro, em Teologia. Eis a desgraça, desculpem, no seu último grau. Ele sabe bem quem é Deus.

O mecânico sabe muito bem quem é, o que é, onde está Deus e com quem anda, suas preocupações e tudo o mais. O que Seu Zezinho não suporta, mas nem que se fale nos nomes, são padres, pastores e igrejas. Ou o nome de Deus “na boca de todo mundo, de qualquer jeito”. Para ele, fontes de mentiras e ignorância, vejam só. Padres, pastores e igrejas são comerciantes e seu estabelecimento comercial, respectivamente, segundo ele. Quanto a Deus, ele não reconhece em ninguém a autoridade para usar o nome, nem que seja para verbalizar a ideia do desejo de boas coisas para ele mesmo, José Ferreira. Quem sabe de Deus é ele, Seu Zezinho, mecânico de automóveis. Mas Seu Zezinho tem lado. Outro dia levei o carro para uma consulta e ele mal abriu a tampa para ver o motor: passamos quase duas horas falando de Ética em Aristóteles e Kant, Deus no meio, sem nenhuma pedra no meio das palavras. Muitas dúvidas, isso sim, e convites para prosseguir de onde paramos: “Nicômaco”, pai e filho de Aristóteles, quer dizer “lar”. Eu ainda não disse isto a ele, mas seu Zezinho é muito mais kantiano do que imagina.

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