terça-feira, 3 de abril de 2012

Estrutura, mito e literatura



“Por mito (...) refiro-me primariamente a um certo tipo de história. É uma história na qual alguns dos personagens principais são deuses ou outros seres mais poderosos que a humanidade. Raramente ela está situada na história: sua ação acontece num mundo acima ou anterior ao tempo comum, in illo tempore, na expressão de Mircea Eliade. Por isso, assim como o conto popular, ela é um padrão de história abstrato.  (...)
“As diferenças entre mitos e conto popular, entretanto, também têm sua importância. Os mitos, quando comparados aos contos populares, estão geralmente numa categoria especial de seriedade: crê-se que eles ‘realmente aconteceram’ ou que têm alguma significação excepcional na explicação de alguns aspectos da vida, tal como o ritual. Por outro lado, enquanto os contos populares simplesmente permutam motivos e desenvolvem variantes, os mitos mostram uma tendência de se manterem juntos e formarem estruturas maiores. Temos mitos de criação, mitos da queda e do dilúvio, mitos de metamorfoses e de deuses que morrem, mitos de casamento divino e de linhagem do herói, mitos etiológicos, mitos apocalípticos; escritores das sagradas escrituras ou colecionadores de mitos, como Ovídio, tendem a arranjá-los em séries. Enquanto os próprios mitos são raramente históricos, eles parecem fornecer um tipo de forma abrangente de tradição, que tem como um de seus resultados a obliteração de fronteiras separando lenda, reminiscência histórica e história real que encontramos em Homero e no Velho Testamento.
“Como um tipo de história, o mito é uma forma de arte verbal e pertence ao mundo da arte. Como arte, e diferentemente da ciência, ele lida não com o mundo que o homem contempla, mas com o mundo que o homem cria. A forma total de arte, por assim dizer, é um mundo cujo conteúdo é a natureza, mas cuja forma é humana; por isso, quando ela ‘imita’ a natureza, a natureza assimila as formas humanas. O mundo da arte é humano em perspectiva, um mundo em que o sol continua a nascer e a se pôr muito depois que a ciência explicou que seu nascimento e desaparecimento são ilusões. Também o mito faz uma tentativa sistemática de ver a natureza em forma humana: ele não perambula simplesmente à soltas na natureza como o conto popular.
“A concepção óbvia que une a forma humana e o conteúdo natural no mito é o deus. Não é a conexão das histórias de Phaeton e de Endymion com o sol e a lua que faz delas mitos, pois poderíamos ter contos populares do mesmo tipo: é, sem dúvida, sua ligação com o corpo de histórias contadas sobre Apolo e Artemis que lhes dá um lugar canônico no sistema crescente de contos que chamamos mitologia. Toda mitologia desenvolvida tende a se completar, a delinear um universo inteiro no qual os ‘deuses’ representam a natureza inteira em forma humanizada e, ao mesmo tempo, mostram em perspectiva a origem do homem, seu destino, os limites de seu poder e a extensão de suas esperanças e desejos. Uma mitologia pode se desenvolver por acréscimo, como na Grécia, ou pela codificação rigorosa e pela exclusão de material não-desejado, como em Israel; mas o impulso em direção a uma circunferência verbal de experiência humana é clara em ambas as culturas.
“Os dois grandes princípios conceituais que o mito usa ao assimilar a natureza à forma humana são a analogia e a identidade. A analogia estabelece o paralelo entre a vida humana e os fenômenos naturais e a identidade concebe um ‘deus-sol’ ou um ‘deus-árvore’. O mito apodera-se do elemento fundamental da forma oferecida pela natureza – o ciclo, tal como o temos diariamente no sol e anualmente nas estações – e o assimila ao ciclo humano da vida, da morte e (analogia novamente) do renascimento. Ao mesmo tempo, a discrepância entre o mundo em que o homem vive e o mundo em que ele gostaria de viver desenvolve uma dialética no mito que, como no Novo Testamento e no Phaedo de Platão, separa a realidade em dois estados contrastantes, um céu e um inferno. (...)
“Um mito pode ser contado e recontado: pode ser modificado ou elaborado, ou diferentes padrões podem ser descobertos nele; sua vida é sempre a vida poética de uma história, não a vida homilética de algum truísmo ilustrado.  (...)
“O mito, portanto, fornece os principais contornos e a circunferência de um universo verbal que é mais tarde também ocupado pela literatura. A literatura é mais flexível do que o mito e preenche esse universo de modo mais completo: um poeta ou romancista pode trabalhar em áreas da vida humana aparentemente distantes dos deuses vagos e dos resumos narrativos gigantescos da mitologia. Mas em todas as culturas, a mitologia se funde imperceptivelmente na e com a  literatura. A Odisseia é para nós uma obra de literatura, mas seu lugar inicial na tradição literária, a importância dos deuses em sua ação e sua influência no pensamento religioso grego posterior, são todos aspectos comuns à literatura propriamente dita e à mitologia e indicam que a diferença entre elas é mais cronológica do que estrutural. Os educadores estão conscientes agora de que qualquer ensino efetivo de literatura tem de recapitular sua história e começar, na primeira infância, com mitos, contos populares e lendas.
“((...) Poetas pensam por meio de metáforas e imagens, não por meio de proposições) e (...) estão profundamente preocupados com a origem, o destino ou os desejos da humanidade. (...)”.

NORTHROP FRYE, Fábulas de identidade: estudos de mitologia poética, p.38-41.

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