quinta-feira, 12 de abril de 2012

As três mulheres III

“(...) Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens...Diadorim! Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei.
Eu estou depois das tempestades.
O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo. Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.
Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dado ataque, mas que não tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro de outros – o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã: que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo – como no instante em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio...
Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.
– “E a guerra?!” – eu disse.
– “Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... João Goanhá e o Fafafa, comuns dos nossos, ainda seguiram perseguindo os restos, derradeira demão...” – João Concliz deu resposta. – “O Hermógenes está morto, remorto matado...” – quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo... Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido – do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca de terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer rir – cara sepultada... Um Hermógenes.
Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia. Sobresseguida à doideira de mão-de-guerra na rua, João Goanhá tinha carregado em cima dos bandidos deles que estavam dando retaguarda, e com eles rebentado... Aquilo não fazia razão. Suspendi minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse meio duro, as pernas teimando em se entesar, num emperro, que às vezes me empalhava. Sendo que me levantei, sustentando, e caminhei os passos; as costas para a janela eu dava.
Nesse ponto, foi que o Alaripe e o Quipes vinham chegando. Notícia de Otacília me dessem; eu custava a me lembrar de tantas coisas. Aqueles dois vinham alheios, do que vinham, desiludidos da viagem deles:
– “Era a vossa noiva não, Chefe...” – o que Alaripe relatava. – “O homem se chamava só Adão Lemes, indo conduzindo a irmã dele, fazendeira, cujo nome é A esmeralda... Iam de volta para suas casas... Os que, então, no Porto-do-Ci deixamos, na barra do Caatinga...”
Tanta gente tinha o mundo... – eu pensei. Tanta vida para a discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros nossos; perguntei:
– “Mortos, muitos?”
– “Demais...”
Isto o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema de amigo. Solucei em seco, debaixo de nada. Agora um me dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando de abrir covas para enterro, revezados. Alaripe fez um cigarro, queria dar para mim; que rejeitei. – “E o Hermógenes?” – aí foi o que o Alaripe perguntou.
Como estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do corredor a mulher do Hermógenes. Ela visse. – A senhora chegue na janela, dona, espia para a rua... – o que João Concliz falou. Aquela Mulher não era malina. – A senhora conheça, dona, um homem demõiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na virtude do ferro... Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, sacudindo só de leve a cabeça, com respeito de seriedade. – Eu tinha ódio dele... – ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em malmolência. – Tomaram as roupas da mulher nua? Era a Mulher, que falava. Ah, e a Mulher rogava: – Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando: –“Traz Diadorim!” – conforme era. – “Gente, vamos trazer. Esse é o Reinaldo...” – o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. – Ai, Jesus! – foi o que eu ouvi, dessas vozes deles.
Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que a mereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem – como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...
Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim – nu de tudo. E ela disse:
– “A Deus dada. Pobrezinha...”
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu – não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia,como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real. Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– “Meu amor!...”
Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.
A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra-de-ametista, tanto trazida... O Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristamente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: – “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela tinha amor em mim.
E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.” (Riobaldo, em GS:V, p.611-616, Nova Fronteira).

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A terceira mulher aparece no encontro definitivo de Riobaldo com Diadorim. Esta terceira mulher também não tem nome, mas a) é a mulher do inimigo Hermógenes, o traidor e b) vinha já há algum tempo sendo chamada de “a Mulher”, assim mesmo, com maiúscula, como a anunciar a presença da mulher Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, existindo morta.

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