sábado, 23 de março de 2013

Estoriazinhas I

Dona Lina, de batismo Lindalva de Souza Pereira, é minha vizinha, pessoa muito querida, extremamente simpática, atenciosa e que completou ontem 70 anos. Está “firme sobre os calcanhares”, como ela mesma diz. Os olhinhos miúdos e espertos comprovam a informação e ontem os amigos e parentes se reuniram para celebrar o aniversário dela.

Convidado, meio acanhado, sem ânimo, assim mesmo eu fui.

Eu tinha em casa, herança de minha avó paterna, um pequeno crucifixo de prata, pequeno, mas bonito e bem conservado. Era uma cruz simples, mas trabalhada por mãos hábeis e também antigas. Bastou que eu o esfregasse numa flanela e brilhou como se tivesse sido feito anteontem. Impôs-se como peça de arte. Engenhosa. Comprar mesmo eu só comprei o colarzinho, também de prata, e fininho por conta do dinheiro curto, e que tinha o objetivo de acompanhar o pingente, evitando, assim, nos meus cálculos, a explicação da história do presente de minha avó, essas coisas que podem demorar e causar desconforto.

Pensei: vou mais cedo e, com uma desculpa qualquer, posso voltar para o meu canto assim que os convidados começarem a chegar. Assim foi. Assim fui. Quando bati e fui recebido por seu Edson, o velho marido, pude perceber que estavam ainda na correria dos preparativos. Pensei de novo: ótimo. Agradecendo a recepção de seu Edson, já adiantei minha necessidade de não me demorar, muito trabalho, etc. Foi quando dona Lina me viu e veio. Abraçamo-nos forte , segurei seu rosto entre as mãos e agradeci por estar ali, por ter me convidado, essas coisas. Ela quis que eu entrasse, me sentasse, tomasse um refrigerante... Eu tirei do bolso o velho crucifixo, que nem mesmo havia embrulhado. Apenas abri a mão e disse que era pra ela, “uma lembrança”, e eu vi a confusão tomar conta de seus olhinhos, que não sabiam se choravam ou sorriam. Ou era eu quem não sabia. Ela apertou foi o presente na mão, depois levou-o ao peito e depois o beijou, perguntando se poderia me contar uma história antiga.

− Claro que sim, dona Lina – e nos sentamos num banquinho de madeira. Seu Edson nos acompanhou e percebi que muitos nos olhavam de longe.

− Meu filho, quando eu era muito pequena, quase criança de colo, fui abandonada pelos meus pais, eu e meus outros três irmãos. Meus pais se separaram por causa que ele bebia muito e minha mãe só suportou aquilo até onde foi capaz. Éramos muito pobres, muito mais que hoje. Cada um de nós foi para num canto. Meu pai era caseiro numa chácara e os patrões dele ficaram com o mais velho, na verdade o único menino. Ficamos, as três irmãs, com uma tia, imagina uma escadinha. Minha tinha não podia cuidar de todas, já tinha um bebê pequeno em casa. Eu, a mais nova fui para a casa um casal amigo da família, e que me batizaram e passaram ser os meus padrinhos. O meu padrinho criava galinhas para vender. O meu irmão mais velho morreu, conforme me contaram depois, por causa de uma briga. Ele era muito revoltado. Nem tinha quinze anos, coitado, não viveu nada. Minhas duas irmãs moravam em casas melhores, mas eu fiquei muito tempo com meus padrinhos num barracão improvisado, numa área invadida, próximo do Ribeirão da Lapinha. Meus pais retomaram a vida deles, juntos, e nos pediram desculpas. Eu fui a única que perdoei eles. Eu gostava dos meus pais, não tinha raiva deles. Minhas irmãs, mais velhas, não quiseram saber. Um dia desmancharam, à noite, o barracão, com polícia e tudo, e fomos morar numa casa emprestada, que ficava perto daqui. Foi nessa casa, eu tinha oito anos e já estudava e ajudava na arrumação de tudo. Uma tarde de domingo, vi meu padrinho chegando, sorrindo e dizendo que tudo ia ficar bem, que eu não me preocupasse. Passou pela portinhola de madeira, me abraçou e me disse: “Olha, é pra você, para proteger você por toa a sua vida”. Sabe o que era? Um crucifixo e um colarzinho iguais a esse que você acaba de me dar, mas simples, conforme as condições dele. Durante quatro anos não me apartei desse presente. Era só me sentir mais angustiada, e me agarrava com ele, chorando baixinho. E sempre me sentia melhor, confiante. Até que a minha prima, bem mais velha que eu, filha do irmão do meu padrinho, pediu para ver meu crucifixo, que ela achava lindo. Tirou-o do colar e pegou, foi saindo com ele e nunca mais me entregava. Reclamei com ela e com todos da casa até que ela disse, olhe só, que uma das galinhas do padrinho havia comido o crucifixo. Acreditei e passei muitos dias, não sei quantos, observando aquelas galinhas todas, tentando adivinhar qual delas estava com minha lembrancinha. Com nenhuma, é claro. Tá bom, já falei demais. Vem jantar. Mas olha, pra mim, eu digo que você me devolveu meu crucifixo.

Ela terminou sua história antiga e eu fui jantar, e logo fui embora. No caminho fui pensando que talvez tivesse sido melhor ter dito logo de início que o pequeno pingente tinha sido de minha avó.







Imagem: Goiânia, longe (Foto: Gilson).

3 comentários:

  1. Preciosa y emocionante historia.
    FELICIDADES !!

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  2. Está muito engraçada a história da D. Lina! As pessoas mais simples valorizam muito os símbolos e isso enriquece a cultura dum povo e dá-lhe esperança nos momentos difíceis.Um abraço do Vitor Cunha.

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  3. Gilson, o meu comentário, que fiz a este texto, vejo que não entrou.
    Dizia que a estória me emocionou e que o teu gesto deu à senhora o poder de regressar à sua infância onde uma outra cruz tinha tido o papel de âncora.

    Na 4ª feira vou reeditar um texto onde há algumas semelhanças com esta tua estória. Aparece para o leres, sim?

    Beijinho

    Laura

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