sábado, 22 de junho de 2013

Michele I




A ausência de ruído lá fora só aumenta, atormenta, o peso do silêncio cá dentro. E o enorme desejo de ir embora, tão íntimo dele, tantas vezes sentido, desde menino, não o deixa dormir. Eis uma fogueira cujo fogo só aumentava.

A cidadezinha, muito pequenina, onde viveu parte da infância, certa vez recebeu um circo. Algo muito estranho sentiu o menino quando viu, acompanhou, muito atentamente, entre curioso e deslumbrado, a gente toda se movimentando para armar aquela lona. Aquele imenso balão mágico. Ainda hoje, já velho, pode descrever com detalhes o estranho homem, Leréia chamado, que, como se propagava, seria, durante as apresentações, pregado na cruz como fizeram com Jesus Cristo, e seria enterrado vivo por horas. Tudo assustador e encantador. Aquele Cristo do circo era muito magro e mantinha uns cabelos ralos e compridos, e barba. Sorria, cumprimentava a todos e convidava para o espetáculo. O palhaço Tonho, só se descobriu depois, na apresentação, que era aquele moço gordo e triste, que com rosto cansado e pensativo desmontava aquelas coisas todas de cima dos caminhões e ajudava a montar as madeiras que serviriam de bancos para o público. Dona Salina, uma italiana grandona, de voz rouquenha, olhos muito azuis, olheiras... Seo Matteo, marido de Dona Salina, o único que estava sempre bem vestido e composto, cabelos com brilhantina e sempre muito bem penteados, parecendo que protegidos da poeira da cidadezinha. Quase todos os meninos e algumas meninas ficavam o dia todo vendo o circo aparecer. Suas brincadeiras todas, biloca, pião, papagaio, pique-esconde foram todas transferidas para as proximidades daquela agitação incomum. O menino estava lá quando ergueram o mastro que levou a lona para o alto, com uma bandeirazinha vermelha triangular muito lá em cima, e tão visível, sacudida pelo vento. Escolheram para a instalação aquele espaço vazio bem em frente da única igreja do lugar.

Ele foi a todas as apresentações, durante aquela semana em que circo esteve lá. Não viu graça no Tonho, o palhaço, teve pena dos animais, tão magros... Descobriu os truques do Leréia e foi apontá-los a ele, que saiu dando cambalhotas, dizendo: “Certo, mas eu sei fazer muitas outras coisas”. Descobriu também que o Tonho era o responsável pela cozinha. Era ele quem preparava a alimentação do grupo, talvez composto por umas vinte pessoas.

No sábado, horas antes da penúltima apresentação, o menino conheceu Michele, filha de Dona Salina e Seo Matteo. Ele absolutamente não sabia o que falar quando estava diante de menina tão dessemelhante. Deviam ter a mesma idade, algo próximo dos nove anos, mas para ele pareceu que Michele tinha muito mais. Ela estava sempre de bermudazinha vermelha e sem sapatos ou chinelos nos pés. Chamou-o para caminhar no picadeiro: “É macio, o Tonho coloca palha de arroz”, disse. Corriam, pulavam, caiam, sorriam. Na apresentação daquele sábado, Michele lhe explicou todo o funcionamento do circo: as viagens, as pessoas fazendo muitas coisas e sendo também artistas. Falou do rapaz da moto que girava no globo da morte, na moça bonita trapezista, prima dela... Segundo Michele todos recebiam dinheiro de seu pai, que era o dono, e que viajavam de cidade em cidade. O menino pensava em tudo e em todos, enquanto a ouvia, mas pensava mais era no Tonho, que a ele parecia trabalhar mais que os outros e era obrigado a fazer as pessoas rirem, sendo triste, ele mesmo.

Michele tinha os olhos da mãe. Não se sabe que forças lhe veio, mas lhe ocorreu dizer que ela tinha o céu nos olhos. Ela era esquisita e mesmo lhe disse mais: que os olhos de todos são infinitos, como o céu, nem importava a cor, que talvez nem fosse azul.

No domingo, depois da missa, o menino não acompanhou os pais no caminho de casa. Estava com algumas ideias que não conseguia decifrar e um pressentimento. Das ideias não cuidou, mas o pressentimento estava certo: ao dar a volta no prédio da igreja, encontrou Michele sentada num pequeno, velho, sujo e baixo murozinho, na sombra de uma goiabeira.

As palavras dela o sacodem ainda agora, quando soa lá fora o silêncio da noite, e imagina o céu infinito que a mesma noite tenta não deixar que se veja: “Hoje é a última apresentação aqui, amanhã desmontamos tudo e vamos embora. Por que você não vem com a gente?”.

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“És senhor da palavra não dita.
Da palavra pronunciada tu te tornas escravo”.
PROVÉRBIO ORIENTAL.


Texto e imagem: Gilson (exceto quando a fonte é referida).

sábado, 8 de junho de 2013

De mares, amores, memórias e amoras





Quando eu era jovem, lia jornais quase que diariamente. Mais velho nunca mais ou raríssimamente os leio. Trata-se de um paradoxo, eu sei: gosto dos jornais antigos, com mais 40 anos, ou seja, que não deveriam interessar a mais ninguém, exceto certamente a historiadores e romancistas, e, talvez um ou outro a buscar esta ou aquela informação específica.

Já com relação aos jornais antigos, tudo muda. Ao encontrá-los, sou capaz de dedicar a eles uma atenção desmesurada. Horas e horas fico a ler notícias perdidas no tempo, esgotadas e sem força aparente, desconectadas da linha causal imediata a que estamos acostumados.

Para quem, por outro lado, mais interessado nas imagens produzidas por uma única linha escrita, a relação causal já está de muito superada. Também o tempo relativiza-se ao extremo, desfia-se até o limite da suspensão. Aí não importa mesmo se o jornal é de ontem ou do início do século passado. Queria mesmo era ler um jornal de Constantinopla do dia 18 de janeiro de 1621 ou outro daquela Minsk do século X. Ah, nem gosto de pensar nessas infelizes impossibilidades.

O cineasta espanhol Luís Buñuel era outro que não gostava de ler jornais. Irônico, neste caso, é o fato de ele ter se graduado em História. Acontece, porém, que, conforme revela em seu livro de memórias (Meu último suspiro), escrito já em seu leito de morte, uma das dores que levaria da vida seria o fato de não poder sair do caixão, de vinte em vinte anos, para caminhar até a banca de jornais, comprar uma porção deles e voltar para o túmulo. É verdade que sugere que passaria duas décadas lendo-os.

Este meu texto se alonga sem dizer a que veio. Então, vamos. Ontem, li notícias da Europa, especialmente de Portugal e Letônia. E do projeto de união. Não pude deixar de pensar em Dona Tareja de Leão, Teresa de Portugal. Na Batalha de São Mamede. Na movimentação das famílias e dos interesses de Estado. Não vou falar de Césares, Napoleões, Hítleres nem de outras formas de totalitarismos menos personalizadas... Muito acima disso estão os sonhos de mar do povo português, de suas frequesias, quintas, uvas e amoras. 

O jornal, contudo, não me prende mais que dois ou três minutos e já salto (exigência da minha memória) para Eugénio de Andrade, cujas imagens sofisticadas a memória (dele) me traz, como talvez tenha trazido a ele, assim como a imagem de seu país, logo a ele, tão distante desses movimentos, as imagens “amorosas” das amoras e dos "fundos fundos" (1) de seu Portugal: 

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

(EUGÉNIO DE ANDRADE, em “As amoras”, de O Outro Nome da Terra, 1988).


Oh, meu Deus, lendo palavras assim, de Eugénio, quão longe essas “amoras” e “Portugal” estão dos jornais e de suas notícias urgentes?! Ele mesmo, o poeta, tão distante sempre pareceu estar... E esteve sempre no centro, se não dos acontecimentos, pelo menos daquilo que era relevante: a alma das gentes de qualquer lugar.

(1) Expressão de Riobaldo (Grande sertão: veredas) para indicar o ponto extremo de sua catábase.


Texto e imagem: Gilson, exceto quando a fonte é indicada.